MADONNA REBATE ETARISMO E REINVIDICA MATURIDADE SEXUALIZADA EM NOVA TURNÊ

  A cantora durante a apresentação de 'Justify my love', na 'The Clebration Tour'

Madonna rebate etarismo e reivindica maturidade sexualizada em nova turnê

Especialistas analisam os discursos e as provocações por trás da "The celebration tour", que terá cerca de 80 apresentações até abril do ano que vem

Por 

Eduardo Vanini

30/10/2023 04h30  Atualizado há 17 horas

Com uma garrafa de cerveja em punho, Madonna faz uma pausa entre uma música e outra e confessa, emocionada, ao público: “Não me sinto muito bem neste momento. Porém, não dá para reclamar, porque estou viva”. Aos 65 anos, a popstar americana está vivíssima e pode provar. Desde que estreou a “The celebration tour”, há três semanas, em Londres, impacta o público pela desenvoltura enérgica ao longo de duas horas do espetáculo cujo mote são os 40 anos de carreira. Uma performance que, até abril do ano que vem, se repetirá quase 80 vezes, entre Europa, Estados Unidos e México, com a maior parte dos ingressos já esgotada.

O desabafo sobre o estado de saúde, durante a passagem da turnê pela Bélgica, no fim de semana passado, revela um aspecto pouco usual de Madonna. Depois de atravessar dias internada, em coma, por causa de uma infecção bacteriana, condição que a forçou a adiar o início dos shows, a cantora famosa pelo perfeccionismo tem se mostrado, como nunca, um ser humano em carne e osso. E isso inclui expor as próprias vulnerabilidades. Já se engasgou enquanto cantava “Into the groove” (e achou graça), apresentou-se com ataduras para conter dores musculares e incluiu, no próprio espetáculo, abordagens sobre o envelhecimento e as pressões estéticas que uma mulher, mesmo tão libertária, sofre.

Uma entrega que não deixa dúvidas do quanto a artista segue com os pés fincados numa indústria que ajudou a construir — e isso não é pouca coisa. “Madonna se torna cada vez mais relevante e única, à medida em que é uma celebridade longeva num mundo de tanta efemeridade”, afirma Gisela Castro, professora do mestrado e do doutorado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM-SP, em que pesquisa longevidade. “Ela é ótima em pautar debates e já vem há alguns anos levantando a bandeira contra o etarismo na indústria do entretenimento, em prol da dignidade do envelhecimento feminino. Não deixa ninguém pautar a maneira como ela deve envelhecer.”

A coreógrafa Deborah Colker evoca a memória de Tina Turner, morta em maio deste ano, para lembrar como a imagem de uma mulher mais velha, exibindo tamanha desenvoltura sobre os palcos, é poderosa. “A Madonna não é a primeira a fazer isso, mas está botando para quebrar, questiona todos os identitarismos”, diz. Do mesmo jeito, a cantora Fernanda Abreu, que tem a material girl entre suas inspirações ao lado de Prince e Michael Jackson, acrescenta que a maneira como ela se mostra atualizada sobre assuntos urgentes deixa tudo ainda mais interessante: “Ela nunca se privou de se posicionar e tem um lado político forte. Nos últimos shows, fez críticas às recentes guerras.”

No cardápio do novo espetáculo, Madonna revisita hits e temáticas que sempre fizeram parte de seu universo. Estão lá a ode às pistas de dança, a homenagem aos amigos vítimas do HIV — um dos momentos mais emocionantes — e o uso de figurinos que remetem a momentos icônicos da carreira. Mas, embora seja a primeira vez que lance uma turnê sem um novo álbum nas mãos, a cantora parece não sucumbir a saudosismos. Há faixas “lado B” e alguns de seus maiores sucessos aparecem em versões atualizadas. Na noite de estreia, surpreendeu com uma versão de “I will survive”, de Gloria Gaynor, tocada no violão, acrescida pela pergunta aos fãs: “Pensaram que eu ia me deitar e morrer?”.

Não se deitou nem deixou para trás um velho hábito que a trouxe até aqui: o da provocação. “Ela nunca olhou para o passado ou se viu como uma pessoa velha. Sempre pensa no presente”, reconhece Thiago Soares, coordenador do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop) da UFPE. “Além disso, não vemos mulheres mais velhas rebolando de shortinho no palco. E isso é muito relevante.”

Ao levar a sexualidade para o palco dessa forma, Madonna reivindica para si uma maturidade sexualizada e desejante, aos olhos da professora Gisela Castro. Um comportamento que subverte as convenções de como uma mulher de 65 anos deve se portar. “Há uma plenitude de prazer e uma ludicidade. Ela brinca e ama em cena”, comenta. “Faz isso dominando sua arte, sem querer replicar o que fazia anteriormente. Não é mais aquela Madonna elástica e atlética, mas é de plena posse de sua capacidade expressiva e sensual.”

Com as filhas Estere e Lourdes Maria na nova turnê — Foto: Getty Images
Com as filhas Estere e Lourdes Maria na nova turnê — Foto: Getty Images

Fazer isso diante de grandes audiências, acrescenta Thiago Soares, implica em reações por parte da opinião pública, o que nem sempre se dá de modo positivo. São as contingências de envelhecer sob os holofotes, escolha oposta à reclusão adotada por algumas celebridades que não resistiram às cobranças pela eterna jovialidade.

Madonna transforma isso num discurso eloquente quando reproduz, no novo show, a polêmica cena da masturbação da turnê “Blond Ambition”, de 1990. Desta vez, ela aparece assombrada por uma bailarina vestida com o figurino da época e o rosto coberto por uma espécie de prótese, típica de liftings e cirurgias plásticas faciais.

Uma resposta aos ataques mais recorrentes à artista, criticada pelo excesso de plásticas. No começo do ano, ela usou as redes para rebater comentários sobre a sua aparência, após uma aparição no Grammy. “Mais uma vez, sou pega pelo olhar do etarismo e da misoginia que permeiam o mundo em que vivemos. Um mundo que se recusa a celebrar mulheres que passam dos 45 anos e sente a necessidade de puni-las quando continuam obstinadas, trabalhando duro e se aventurando”, escreveu.

Referência a procedimentos estéticos na "The celebration tour" — Foto: Getty Images
Referência a procedimentos estéticos na "The celebration tour" — Foto: Getty Images

Mas, afinal, há alguma incoerência entre pregar a liberdade de corpos e lançar mão de cirurgias plásticas ao mesmo tempo? Para Gisela Castro, a leitura deve ser exatamente a oposta. Não cabe num debate como este, de acordo com a pesquisadora, qualquer tipo de purismo do tipo “pintar o cabelo ou não”. “Não é isso que define alguém. Quem dirá uma estrela como ela, que vive da imagem”, pondera. “Se existem procedimentos variados à nossa disposição, algumas de nós podemos e queremos recorrer a eles. A Madonna, a meu ver, não está com dificuldade em envelhecer. A dificuldade está na cabeça de quem acha que há um jeito A ou B para isso.”

Do mesmo modo, a consultora de moda Erika Palomino acompanha a artista desde o começo da carreira e enxerga coerência em suas atitudes. “Seus embates contra o sexismo e os preconceitos permanecem atuais e, por isso, seu discurso ainda se faz necessário, sobretudo agora, acrescido de etarismo”, afirma. “Sua mais recente transgressão parece mesmo envelhecer como uma mulher dona de seu nariz, que faz o que quer e ainda faz sucesso.”

Como canta Madonna num dos números intensamente coreografados do show: “Não me diga para parar”.


Fonte:https://oglobo.globo.com/ela/gente/noticia/2023/10/30/madonna-rebate-etarismo-e-reivindica-maturidade-sexualizada-em-nova-turne.ghtml

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